terça-feira, 8 de setembro de 2009

Carta de uma prisão em Birmingham.

Sabemos por meio de experiências dolorosas que a liberdade nunca é voluntariamente concedida pelo opressor; ela tem de ser exigida pelo oprimido. Francamente, ainda não tomei parte em uma campanha de ação direta que fosse “oportuna” na visão daqueles que não sofreram indevidamente da doença da segregação. Já faz anos que ouço a palavra “Espere!” Ela ressoa nos ouvidos de cada negro com uma familiaridade aguda. Esse “espere” quase sempre significou “nunca”. Temos de chegar à percepção, junto com um de nossos eminentes juristas, de que “a justiça adiada por muito tempo é justiça negada”.
Esperamos por mais de 340 anos por nossos direitos constitucionais e concedidos por Deus. As nações da Ásia e da África estão dirigindo-se com uma velocidade a jato rumo à conquista da independência política, mas nós ainda nos arrastamos a passo de cavalo e de charrete rumo à conquista de uma xícara de café em um aparador. Talvez seja fácil àqueles que nunca sentiram os dardos perfurantes da segregação dizer “espere”. Mas quando você viu bandos perversos lincharem suas mães e pais à vontade e afogar suas irmãs e irmão a seu capricho; quando você viu policiais cheios de ódio amaldiçoarem, chutarem e até matarem seus irmãos e irmãs negros; quando você vê a vasta maioria de seus vinte milhões de irmãos negros sufocando-se em uma jaula hermética da pobreza em meio a uma sociedade de abundância; quando você de repente descobre sua língua travada e sua fala gaga ao tentar explicar a sua irmã de seis anos de idade por que ela não pode ir ao parque de diversões público cuja propaganda acabou de passar na televisão, e vê lágrimas jorrando dos olhos dela quando lhe é dito que o Funtown está fechado para crianças de cor, e vê ameaçadoras nuvens de inferioridade começando a se formar no pequeno céu mental dela, e a vê começar a distorcer sua personalidade ao desenvolver um rancor inconsciente contra as pessoas brancas; quando você tem de inventar uma resposta a um filho de cinco anos de idade que está perguntando: “papai, por que as pessoas brancas tratam as pessoas de cor tão mal?”; quando você faz uma viagem através de seu estado e descobre ser necessário dormir noite após noite nos cantos desconfortáveis de seu carro porque nenhum motel o aceita; quando você é humilhado entra dia sai dia por sinais irritantes dizendo “branco” e “de cor”; quando seu prenome torna-se “neguinho”, seu nome do meio torna-se “menino” (não importa sua idade) e seu sobrenome torna-se “John”, e sua mulher e mãe nunca são chamadas pelo título respeitável de “Sras.”; quando você é perseguido de dia e assombrado à noite pelo fato de que você é um negro, vivendo constantemente na ponta dos pés, sem saber exatamente o que esperar em seguida, e é atormentado por medos interiores e ressentimentos exteriores; quando você está sempre lutando contra uma impressão degradante de “não ser ninguém” – então você entenderá porque achamos difícil esperar. Chega um momento em que a capacidade de suportar esgota-se, e os homens não estão mais dispostos a mergulhar no abismo do desespero. Espero, senhores, que vocês possam compreender nossa impaciência legítima e inevitável. Vocês manifestam uma boa dose de ansiedade quanto à nossa disposição de violar as leis. Essa é certamente uma preocupação legítima. Como nós exortamos tão ativamente as pessoas a obedecerem à decisão de 1954 da Suprema Corte que baniu a segregação em escolas públicas, à primeira vista pode parecer um tanto paradoxal que nós conscientemente violemos leis. Também se poderia perguntar: “Como vocês podem advogar a violação de certas leis e a obediência a outras?” A resposta está no fato de que existem dois tipos de leis: as justas e as injustas. Eu seria o primeiro a advogar a obediência a leis justas. Tem-se uma responsabilidade não só legal como também moral de obedecer a leis justas. De modo contrário, tem-se uma responsabilidade moral de desobedecer a leis injustas. Concordaria com Santo Agostinho em que “uma lei injusta simplesmente não é lei”.
Viajei acima e abaixo por Alabama, Mississipi e todos os outros estados sulistas. Em dias sufocantes de verão e manhãs revigorantes de outono, contemplei as lindas igrejas do sul, com seus cumes majestosos apontados em direção aos céus. Admirei os perfis impressionantes dos amplos edifícios de educação religiosa. Repetidamente, peguei-me perguntando: “Que tipo de pessoa ora aqui? Quem é seu Deus? Onde estavam suas vozes quando dos lábios do governador Barnett respingaram palavras de interposição e nulificação? Onde elas estavam quando o governador Wallace deu um toque de clarim em favor do desafio e do ódio? Onde estavam suas vozes de apoio quando homens e mulheres negros, feridos e exaustos, decidiram levantar-se dos calabouços escuros da complacência até as colinas claras do protesto criativo?”
Sim, essas perguntas ainda estão na minha mente. Em decepção profunda, chorei pela frouxidão da igreja. Mas estejam certos de que minhas lágrimas foram lágrimas de amor. Não pode existir decepção profunda onde não existe amor profundo. Sim, amo a igreja. Como poderia não amar? Estou na posição um tanto singular de filho, neto e bisneto de pregadores. Sim, vejo a igreja como o corpo de Cristo. Mas, oh!, como maculamos e deixamos cicatrizes nesse corpo por meio da negligência social e por meio do medo de sermos não-conformistas.
Houve um tempo em que a igreja era bastante ponderosa – no tempo em que os primeiros cristãos regozijavam-se por ser considerados dignos de ter sofrido por aquilo em que acreditavam. Naqueles dias, a igreja não era apenas um termômetro que registrava as idéias e princípios da opinião pública; era um termostato que transformava os costumes da sociedade. Quando os primeiros cristãos entravam em uma cidade, as pessoas no poder ficavam transtornadas e imediatamente buscavam condenar os cristãos por serem “perturbadores da paz” e “forasteiros agitadores”. Mas os cristãos prosseguiam, com a convicção de que eram “uma colônia do céu”, que devia obediência a Deus e não ao homem. Pequenos em número, eram grandes em compromisso. Eles eram intoxicados demais por Deus para serem “astronomicamente intimidados”. Com seu esforço e exemplo, puseram um fim em maldades antigas como o infanticídio e duelos de gladiadores. As coisas são diferentes agora. Com tanta frequência a igreja contemporânea é uma voz fraca, ineficaz com um som incerto. Com tanta frequência é uma arquidefensora do status quo. Longe de se sentir transtornada pela presença da igreja, a estrutura do poder da comunidade normal é confortada pela sanção silenciosa – e com frequência sonora – da igreja das coisas tais como são.
Mas o julgamento de Deus pesa sobre a igreja como nunca pesou. Se a igreja atual não recuperar o espírito de sacrifício da igreja primitiva, perderá sua autenticidade, será privada da lealdade de milhões e será descartada como um clube social irrelevante com nenhum significado para o século XX. Todos os dias, encontro pessoas jovens cuja decepção com a igreja tornou-se uma repugnância absoluta.
Nunca escrevi uma carta tão longa. Temo que seja longa demais para tomar seu tempo precioso. Posso lhes garantir que teria sido muito menor se a tivesse escrito em uma mesa confortável, mas o que mais se pode fazer quando se está sozinho em um cela apertada a não ser escrever longas cartas, pensar longos pensamentos e rezar longas orações?
Espero que essa carta encontre-os fortes em sua fé. Espero também que as circunstâncias em breve permitam que me encontre com cada um de vocês, não como um integracionista ou um líder dos direitos civis, mas como um colega clérigo e um irmão cristão. Tenhamos todos esperança em que as nuvens negras do preconceito desapareçam em breve e a neblina profunda da incompreensão dissipe-se das nossas comunidades cheias de medo, e que em um amanhã não muito distante as estrelas radiantes do amor e da fraternidade brilhem sobre nosso grande país com toda a sua beleza cintilante.

 *Excertos de uma carta escrita pelo Pr. Martin Luther King Jr. na cela de uma prisão na cidade de Birmingham, em 1963. Nestes tempos bicudos, em que parte considerável da liderança evangélica brasileira se rende aos manjares do rei em troca de votos e do silêncio diante dos desmandos e da corrupção, sendo ela mesma corrupta, vale a pena a leitura deste texto. Trata-se de um verdadeiro manifesto profético em favor da igualdade, liberdade e fraternidade para todos. Mesmo que seja, nas palavras do próprio Dr. King, a sua carta mais longa, a leitura na íntegra é altamente recomendada por este que vos fala. Para tanto, clique aqui e acesse o site do projeto Ordem Livre. O presente repete o passado. Aqui, como lá, o silêncio dos bons tem sido mais pernicioso do que a astúcia dos maus.

Um comentário:

Jacque disse...

Fico muito feliz em saber que você é valente e não se cala diante de tanta falta de amor.
Quero que Deus continue te dando muita virtude e coragem para combater preconceitos e a corrupção de nosso país.

Por enquanto você apenas está fazendo seu pequeno papel na sociedade que é denunciar o mal.
Eu creio no Deus que servimos, e sei o quanto Ele tem ouvido nosso clamor em favor dos pobres e dos oprimidos.

Deus há de enxugar dos olhos deles toda a lágrima, causada pelo preconceito.

Amei ler essa carta nessa manhã Joel.