“Arrependam-se e sejam batizados” é a primeira e mais exemplar porção do unguento que Lucas coloca na boca de Pedro para aplacar a ânsia da multidão transtornada pelo Espírito. Como que para endossar o seu caráter exemplar, a mesma fórmula reaparecerá, articulada de diferentes formas, em outros momentos-chave do livro.
A nós cabe a dupla tarefa de determinar o que essas palavras e suas demandas significavam para os que a ouviam naquela manhã, e examinar a fidelidade dessas demandas à postura e à herança do Jesus dos evangelhos.
Como se verá, os ouvintes de Pedro interpretarão a primeira injunção, “arrependam-se”, à luz da segunda, “sejam batizados”, por isso será necessário começar pelo batismo.
É importante que ao final sejamos capazes de reconhecer com clareza duas coisas. A primeira, mais evidente mas facilmente negligenciável, está em que ao dizer “sejam batizados”, Pedro não estava se referindo a (e muito menos exigindo) uma conversão voluntária e formal dos seus ouvintes ao cristianismo. Nesta altura da narrativa e da história o cristianismo não havia sido ainda inventado ou intuído em qualquer sentido importante. Os discípulos não haviam ainda ousado proferir ou apropriar-se da palavra igreja, e só daqui a duas ou três páginas (e em contexto diverso) os seguidores de Jesus serão chamados “pela primeira vez” de cristãos. O batismo como rito de entrada ao cristianismo não existia na forma de conceito ou de prática. Eram aqui judeus falando a judeus, alinhando o Deus e a fé que tinham em comum às suas mesmas promessas.
Em segundo lugar, e como que para compensar o que foi dito, aquela não era a primeira vez que os romeiros de Pentecostes ouviam o termo “batizar”. Sendo todos “judeus devotos”, podemos tomar como certo que não ignoravam as raízes profundas que a idéia de batismo (e de purificação com água em geral) tinha em sua tradição e sua prática. Quando expostos ao “sejam batizados” de Pedro, souberam ter uma idéia muito precisa do que ele estava falando e de suas implicações.
Em sua ênfase na santidade ritual, a Lei de Moisés estabelecia um enorme número de condições que tornavam pessoas e objetos “impuros” – isto é, inaptos para o serviço do Templo e dos sacrifícios. A impureza ritual era uma condição altamente contagiosa: um leproso era por definição impuro; a pessoa que tocava um leproso era contaminada pela sua condição e ficava ela mesma impura. Tudo que o imundo tocar se tornará imundo (Números 19:22).Tornava-se imediatamente impuro o homem que ejaculava, à mulher que menstruava e qualquer um que tocasse um cadáver, um osso ou um túmulo; mas tornava-se também impuro quem tocasse o corpo, a roupa ou a cama de qualquer um desses impuros de primeira instância.
Ao mesmo tempo em que esclarecia tantos e tão frequentes riscos, a Lei elencava uma série de provisões para a efetiva descontaminação de objetos e pessoas. Algumas dessas soluções envolviam a apresentação de sacrifícios, mas praticamente todas requeriam a purificação com água – seja por lavagem, aspersão ou imersão, ou ainda uma combinação desses três.
O homem que ejaculava devia “banhar seu corpo todo”, e a pessoa que tocava a cama de uma mulher menstruada devia lavar suas roupas e “banhar-se em água” (Levítico 15:16,21). Quem tocasse o cadáver de um ser humano ficava impuro por sete dias. No terceiro e no sétimo dia uma pessoa ritualmente pura devia derramar água viva (isto é, água corrente) num vaso que contivessse as cinzas de uma oferta pelo pecado; em seguida, com um ramo de hissopo, aspergiria essa água sobre a pessoa impura e seus pertences. Finalmente, no sétimo dia, o impuro devia “banhar-se em água”, e a partir do pôr do sol estaria limpo (Números 19:17-20). Depois de apresentar-se ao sacerdote e oferecer os sacrifícios requeridos, o leproso declarado limpo devia raspar todos os cabelos e pelos do corpo e em seguida “banhar o corpo em água” (Levítico 14:6-8,15-16).
O verbo hebraico para esse “banhar-se” é que foi traduzido na Septuaginta pelo grego baptizo – mergulhar, imergir, submergir, – o mesmo “batizar” que comparece no Novo Testamento e na instrução de Pedro.
A Mishná, compilada entre o primeiro e o segundo século mas fixando por escrito material muito anterior, registra as instruções complementares que a tradição estabeleceu para o cumprimento das variadas exigências da Lei. Sobre os banhos de purificação – os batismos – a Mishná explica que exigiam, em primeiro lugar, água suficiente para cobrir o corpo inteiro. Como nenhuma parte do corpo devia deixar de estar em contato com a água, o batismo de purificação requeria ainda a nudez completa; quando testemunhas eram requeridas, homens acompanhavam homens e mulheres acompanhavam mulheres. E segue estabelecendo dimensões ideais para as piscinas batismais e normas rigorosas sobre a qualidade da água que podia ou não ser utilizada.
Que era dessa forma que os judeus do tempo de Jesus enxergavam as necessidades do batismo fica claro pelo número de antigas piscinas batismais (mikvaoth) encontradas no Israel daquele período. Só em Jerusalém, e datando do primeiro século, foram encontradas 150. Os membros da seita dos essênios, que havia desenvolvido regras de pureza ainda mais exigentes (requeriam imersão completa caso um essênio fosse tocado por alguém de fora, ou mesmo por um membro inferior da comunidade) construíam, literalmente, seus edifícios ao redor de recursivas piscinas de purificação.
O requerimento principal para um estrangeiro que quisesse se converter ao judaísmo era a circuncisão, mas a partir do segundo século os textos começam a mencionar, como exigência adicional, o batismo de imersão e o sacrifício. O primeiro batismo do prosélito (isto é, convertido) representava (em conformidade com suas contrapartidas explicitadas na Lei) a sua transição do estado de estrangeiro impuro ao de judeu autorizado a entrar no Templo e participar do regime dos sacrifícios.
No tempo de Jesus não havia judeu que ignorasse, portanto, o verbo batizar, que representava em grego um conceito e um procedimento milenar da cultura hebraica.
Além de servirem para efetuar a purificação ritual dos que se submetiam a eles, todos os batismos de purificação, quer de judeus quer de prosélitos, tinham outra coisa em comum: eram invariavelmente realizados sem assistência pela pessoa que buscava a purificação.Ser batizado era uma novidade e uma contravenção. Mesmo quando havia testemunhas, a pessoa descia sozinha até a água e sozinha mergulhava de corpo inteiro, batizando a si mesma. Mesmo que não recorramos às regras explicitas da Mishná, o exame da linguagem de Números e Levítico deverá bastar para deixar isso claro (”deve banhar-se”, etc).
Mas então surgiu em cena um personagem que introduzia na tradição uma reviravolta, oferecendo um novo discurso e um novo procedimento. Ao invés de pregar que as pessoas deviam se batizar para alcançar a purificação, esse sujeito tomou os pés pelas mãos e começou a batizar as pessoas ele mesmo. Até aquele momento o que acontecia é que as pessoas batizavam a si mesmas; “ser batizado” era uma novidade e uma contravenção. Esse procedimento mostrou-se de imediato tão singular que rendeu ao seu proponente um apelido, o de “batizador” – o Batista.
Paulo Brabo, em A Bacia das Almas.
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